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quarta-feira, 1 de junho de 1988

Tropeiros de Vacaria - o regionalismo nas obras de Miguel Zelmar e Paulo Édson Paim

Artigo apresentado no III Seminário de Literatura – Autores Regionais, realizado em Lagoa Vermelha/RS, de 11 a 13 de Maio de 2006, e autorizada sua publicação.




Tropeiros de Vacaria – o regionalismo nas obras de
Miguel Zelmar e Paulo Édson Paim

Edgar Bueno Silveira[1]

RESUMO:
A Literatura é uma das melhores, mais vastas e mais belas fontes históricas. Muitos autores que retrataram sua época em suas obras literárias são hoje celebrados como mestres das letras. Para ilustrar, cito Aluísio de Azevedo que em O Cortiço retrata a questão escravista e a falsidade de muitos homens brancos, ao narrar o suicídio de Bertoleza, a negra que descobrira que sua carta de alforria era falsa. Outro autor de renome internacional, que legou obras de cunho regionalista, é Érico Veríssimo. As atitudes de Rodrigo Cambará, nem sempre bem vistas pela sociedade, mostram o gaúcho em tempos em que era marginalizado, gostava de “pelear”, de “andar com as chinas” e o coronelismo histórico, retratado no Coronel Amaral, que mandava no povoado, na política, na vida das pessoas e até no padre. Além de Azevedo e Veríssimo, outros autores regionalistas e regionais, menos conhecidos mas não menos qualificados, demonstram a vida e o dia-a-dia das pessoas do Rio Grande do Sul. Assim são Miguel Zelmar Alves Paim e Paulo Édson Paim, que com suas poesias descreveram o cotidiano dos gaúchos da região de Vacaria, Ipê, Campestre da Serra e Lagoa Vermelha. Tudo isso, integrado e influenciado por um contexto histórico apaixonante, belo e tradicional.

Palavras-chave: literatura, tradição gaúcha, poesia, autores, tropeiros.


Introdução



Muito se sabe sobre a história da região de Vacaria, Lagoa Vermelha, Esmeralda, Campestre da Serra, Bom Jesus, São José dos Ausentes, etc., contudo poucas são as pessoas que detém esse vasto conhecimento.
A origem e povoação de toda a região, arraigada às tropeadas e à cultura gaúcha, fica em poder de alguns historiadores, pesquisadores, professores universitários e cidadãos de idade avançada e que vivenciaram isso tudo.
Vacaria e Lagoa Vermelha são intimamente ligadas política e historicamente. Em certo momento histórico, Vacaria pertenceu à Lagoa Vermelha, por motivos políticos. Por motivos históricos, o tropeirismo também as integra.


A íntima ligação de Lagoa Vermelha com Vacaria e a Tradição Gaúcha



A BR 285 entre Vacaria e Lagoa Vermelha, como tantas outras, segue o traçado que os tropeiros faziam.
Em 1819, o tropeiro paulista João de Barros abriu caminho entre Vacaria e Cruz Alta, o que permitiu a ocupação e povoamento de nossa região, a iniciar-se por Lagoa Vermelha.
De lá seguiram rotas para o centro do Estado e para a região missioneira/fronteiriça.
A ligação entre o Rio Grande do Sul e Santa Catarina também se dava pela região de Lagoa Vermelha, mais precisamente pela localidade conhecida como Pontão, hoje na região do atual município de Barracão. Aí  foi instalado um posto de coleta de impostos em 1849, e por aí passavam tropeiros, tanto de gado quanto de mulas.
Em 22 de Outubro de 1850, por Lei Provincial número 158, Vacaria se desmembrava de Santo Antônio da Patrulha e é elevada à categoria de vila. Contudo, em 1857, pela Lei número 337 de 16 de Janeiro, Vacaria é anexada à Comarca de Porto           Alegre, removendo a sede para Lagoa Vermelha, e em 1857 a Lei número 391 extinguiu o município, passando, juntamente com Lagoa Vermelha para Santo Antônio da Patrulha. Em 1876, pela Lei número 1018 de 12 de Abril, Vacaria e Lagoa Vermelha passam à           jurisdição de Passo Fundo, e finalmente em 1878, pela Lei número 1115, de 1º de Abril: volta a sede para Vacaria.
Para alguns historiadores, o próprio surgimento da Baqueria de los Piñales, descoberta pelos portugueses no Século XVIII, teria vínculo com uma rota indígena que ligava a atual Lagoa Vermelha à atual Vacaria. O gado oriundo da Baqueria Del Mar, que aqui se tornou xucro, foi o alvo dos primeiros tropeiros e desbravadores.
Outro vínculo que une Lagoa Vermelha e Vacaria é a tradição gaúcha. Esmeralda, localizada entre os dois municípios, foi berço do tiro de laço, uma da mais apreciadas competições tradicionalistas nos rodeios crioulos. José Mendes, um dos maiores letristas e músicos regionalistas do Rio Grande do Sul e do Brasil é natural da região de Esmeralda. As letras de suas músicas são verdadeiros relatos do cotidiano dos gaúchos da região, que todos os dias buscavam o gado e campereavam em seus “picaços velhos”, iam aos “Rodeios de Vacaria”, escutavam a “siriema cantando” e assim mandavam a “tristeza embora”. Além disso, sabiam de um monge, de nome “São João Maria, que mataram três vezes, mas nunca morria”, e de uma certa lagoa vermelha, da qual “sentiam saudades”, bem como “das suas gaúchas, que não têm vaidade”.
Idalécio Vitter Moreira, outro autor filho da terra, mostrou de forma muito crítica através de seus contos e crônicas, a vida do povo da região, com seus afazeres, sofrimentos e alegrias.
Fidélis Dalcin Barbosa e José Fernandes de Oliveira escreveram obras de incalculável valor literário e histórico. Certamente hoje, mesmo ambos estando na “Estância Grande do Céu”, eles nos aplaudem por valorizar os autores regionais, regionalistas, bem como suas obras.


O regionalismo nas obras de Miguel Zelmar e Paulo Édson Paim



As obras dos autores Miguel Zelmar e Paulo Édson Paim são muito difundidas no meio tradicionalista. Seus versos por diversas vezes venceram o concurso de poesias inéditas que existia nos Rodeios Crioulos Internacionais de Vacaria, e que há algumas edições infelizmente não é mais realizado. Quando suas poesias não mereceram o título, ficaram em segundo ou terceiro lugar.
No II Seminário de Literatura e Autores Regionais da UERGS, então realizado pela unidade de Vacaria, pai e filho estiveram presentes e falaram de suas obras. Além de Paulo Édson, Miguel Zelmar tem outro filho poeta, talvez esse o mais conhecido dos três no meio tradicionalista: Júlio César Paim.
Pai e filho encantaram o público do II Seminário de Autores, pela simplicidade, humildade, carisma e estilo alegre e descontraído de conversar. Falaram porque começaram a escrever e porque têm estilos de poesias diferentes. Miguel Zelmar, “quadrinhas”, poesias rimadas. Paulo Édson opta pelo verso branco na maioria de seus poemas.


Miguel Zelmar: “quero deixar bem claro, poemas eu não faço, eu faço rimas. Faço quadrinhas”


Miguel Zelmar foi professor, lecionou nas antigas Escolas Rurais e hoje reside em Ipê, onde é pecuarista e agricultor.
Com seu estilo bastante descontraído, o autor contou que morava no interior e foi viver na cidade para estudar. Segundo ele, as crianças da cidade eram muito mais instruídas, pois tinham contatos com livros e gibis, enquanto ele, recém chegado do sítio, tinha até mesmo um vocabulário muito diferenciado que os citadinos. Por vezes foi motivo de chacota e risos por falar de uma maneira “grossa”. Contudo, se formou e voltou ao campo para lecionar.
Miguel começou a gostar de poesia quando leu alguns versos de autores de sua época. “Por que senti nos versinhos que a gente via nos livros e aquilo começava a me tocar. E aí eu comecei lá pelos 12,13 anos fazer versinho, umas quadrinhas só.(...) Comecei, gostei, adorei, deito e me levanto, bebo e como poesia. A minha vida inteira ela é poesia.”
Outro motivo pelo apego pela poesia foi a facilidade para aprender conteúdos na escola.
“Eu sou menino
  Um menino juvenil
  Pedro Álvares Cabral
  Descobriu o Brasil.”
Para aprender sobre Tiradentes, “eu pegava o ano de 1792, quando mataram o Tiradentes e daí eu misturava vacas e bois para rimar com 1792 e até aí eu não fazia poesia. Quero deixar bem claro, poemas eu não faço, eu faço rimas. Faço quadrinhas.”
Ao introduzir a poesia em suas aulas, o já professor Miguel Zelmar percebeu o quanto aquilo repercutia positivamente nas crianças. Ao trabalhar com poesia, não trabalhava apenas a sua interpretação. Trabalhava também palavras desconhecidas, fazendo com que os alunos as procurassem no dicionário para entender o sentido daquele verso.
As crianças começaram a escrever poesia. Entre um conteúdo e outro, poesias que falavam de alguns dos assuntos relacionados a eles eram introduzidas.
Foi especialmente para o II Seminário de Literatura - Autores Regionais, que Miguel Zelmar escreveu a seguinte poesia:

Confictor - Confissões

Não sei se eu nasci chorando
Não sei se eu nasci cantando
Vivia eu perguntando
Sempre a minha mãezinha
Ela dava uma risadinha
Olha disso eu não lembro
Mas tu nasceste em setembro
Na primavera,
Minha florzinha
A flor, a alma, desperta.
Leva a musica e a poesia
E o perfume e a alegria
Um toque confortador
Um bálsamo adivinhador
Manda a tristeza embora
A alma se revigora
Como quem transmite amor
Por isso, meu filho, cantes
Em teu rancho ou na rua
olhe a beleza da lua
E as estrelas reunidas
São elas bem parecidas
Com a nossa existência
Quem traz a luz à querência
Dá vida as nossas vidas
Deus plantou nossas florestas
Pra gerar pássaros e ninhos
Lá tem frutos tem espinhos
É assim a divina obra
No ecossistema, a cobra.
 O lagarto, o besouro
São as tais moedas de ouro
Nada falta e nada sobra
Porque as leis universais,
Não podem ser revogadas
Nem as matas derrubadas
Dos bichos os seus viveiros
Só seremos bons parceiros
E donos desse terreno
Abolindo o veneno
Na vida de nossos roceiros
Notaste, filho querido,
Que o verso é a fotografia
De semelhante magia
Da mais verdadeira prece
Se espontâneo acontece
E aquele que foi brindado
Levará sempre guardado
Jamais da vida esquece
O verso é um pensamento
No âmago quase um culto
Nosso peito, nosso vulto
morno, frio às vezes quente
Me parece de repente
Igual o nascer do Ipê
Lá distante a gente vê
Germinar nova semente
Minha mãe ansioso eu estava
Chegará à oportunidade
Cantar a minha cidade
Com a gente que vivi
Muito errei, muito sofri
Pelas mancadas que dei
E esse dia esperei
Para me ajoelhar a ti
Meu gesto será pequeno
Perante erros brutais
Desde os tempos coloniais
Desde lá estou devendo
A São Miguel eu acendo
Uma vela a cada ano,
Este pobre Vacariano
Não é gente é um remendo
São centenas ou milhares
De pessoas que ofendi?
E das vezes que parti
Sem dar-lhes satisfação
Mas não havia razão
Para que assim procedesse
E a eles aborrecesse
Pedindo estou o perdão
Desta querência
Só flores vêm enfeitar o meu ninho
O meu pai seu Pequeninho
Falou-me na mocidade
Só se leva a eternidade
O bem que a gente fizer
Faça o melhor que puder
Meu filho
Abrace a amizade.

Ao concluir a declamação, o autor foi aplaudido de pé pelo público presente. Suas poesias falam de campo, falam de gado, de gaúchos, cavalos, cotidiano rural e da amizade de tempos de outrora.


Paulo Édson Paim: “Eu era tímido. Comecei a escrever por necessidade.”


Com o mesmo estilo do pai, Paulo Édson cativou o público do II Seminário de Literatura – Autores Regionais pelo carisma e descontração. Segundo ele, a timidez e a necessidade de comunicação fez com que ele começasse a escrever. O autor acredita que era um aluno “mediano” em Língua Portuguesa, e que hoje leva muito tempo para concluir suas poesias e deixa-las de acordo com sua vontade. “Mexo muito nas minhas poesias, (...) troco a ordem dos versos(...).”
Outro importante aspecto a ser levado em conta para que Paulo Édson escreva suas poesias é o tema, ou falta deste. Segundo o autor, um bom tema desperta a inspiração.
As poesias de Paulo Édson são em verso branco, pois segundo ele o declamador pode impor o seu estilo ao interpretar as poesias. Na sua opinião, uma poesia em verso rimado, embora seja mais difícil de ser composta, bitola um pouco a arte do declamador.
Assim como o pai, Paulo Édson escreve sobre o campo, sobre o gado, sobre as casas e moradores de outrora, do cotidiano do casarão de sua avó, dos alambradores, da vida simples do povo campeiro.
No II Seminário de Literatura o autor comentou um poema sobre sua avó, que hoje vive só em um casarão enorme, outrora seu “projeto previa abrigar quase uma dúzia de vidas”, os filhos e netos. Logo foi solicitado pelo público que declamasse o poema inteiro, que emocionou muitas pessoas. Quantos de nós conhecemos casos em que os pais, ou apenas um deles, hoje idosos, vive sozinho em uma casa onde em outros tempos a família toda vivia reunida.
As poesias de Paulo Édson também foram premiadas em diversos rodeios e festivais de poesias.
Talvez um dos mais belos poemas de Paulo Édson traz à tona recordações de pessoas que deixaram o campo e vieram morar na cidade, deixando a infância e parte da vida para trás:

“A mala que trouxe o que era meu, foi-se velha embora
Eu continuava a amá-la, mas, a falta de espaço,
Tive de jogá-la fora.
Parece que dentro dela –desbotada – estavam todas guardadas e azuis
As lembranças do passado, o baú da nossa história.
-          querência eterna dentro da gente.”

Paulo Édson acredita “que os gaúchos de hoje não são mais como os gaúchos de antigamente”. A amizade, a confiança, a tradição gaúcha, as tropeadas, tudo é valorizado pelo autor.
O autor tem uma poesia que fala sobre a casa de seus sonhos, a ser construída no campo.
Paulo Édson é um apaixonado pelas coisas do pago. “Um dia quero voltar para o campo. E se eu voltar para o campo, é porque eu venci.”


Considerações Finais



É incalculável a importância e o valor dos autores e das obras de cunho regional e regionalista. Regionalista por retratar a vida de um povo, regional por mostrar o cotidiano de determinada localidade.
Os Seminários de Literatura – Autores Regionais são uma forma de resgatar e dar o merecido valor a estes autores e seus escritos. O valor literário desses eventos é grandioso.
Uma das funções da escola e da educação é transmitir os saberes historicamente acumulados pela humanidade às gerações futuras, bem como trabalhar a cultura local e regional. É preciso conscientizar os professores do Ensino Fundamental e Médio da importância de fazer os alunos conhecerem o seu chão, o local onde vivem, sua identidade cultural e histórica. A literatura é um dos caminhos para se chegar a isso.
Que o esse vasto conhecimento não fique apenas entre intelectuais, pesquisadores, historiadores, no meio universitário, tradicionalista gaúcho e na memória das pessoas. É preciso, como afirmou nosso saudoso Idalécio Vitter Moreira, no I Seminário de Literatura – Autores Regionais: “É preciso escrafunchar a realidade local e regional”. Faz-se necessário disseminar esse conhecimento.
Aos autores regionais e suas obras o seu devido valor. As que trabalham e lutam pela cultura local e regional, os meus mais sinceros agradecimentos e admiração.
Referências Bibliográficas:


BARBOSA, Fidélis Dalcin. Vacaria dos Pinhais. Editora da Universidade de Caxias do Sul: Caxias do Sul, 1978.

BRASIL – Ministério de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: introdução aos parâmetros curriculares nacionais / Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997.

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9394/96. Brasília, 1996.

Fitas de Vídeo (VHS) do I e II Seminários de Literatura - Autores Regionais, promovido pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul – UERGS, unidade de Vacaria, nos anos de 2003 e 2004.

OLIVEIRA, José Fernandes de. Rainha do Planalto. Editora São Miguel: Caxias do Sul, 1959.

PAIM, Miguel Zelmar. II Galope da Poesia.

PAIM, Paulo Édson. De Pátria e Raiz. Porto Alegre: EVANGRAF, 1997.

PAIXÃO CÔRTES, João Carlos. Danças Birivas do Tropeirismo Gaúcho. Porto Alegre: CORAG, 2000.

PINOTTI, Adhemar. Pesquisa Histórica sobre Vacaria. Folheto publicado em ocasião do aniversário do município.

RÜCKERT, Aldomar A. A trajetória da terra: ocupação e colonização do centro-norte do Rio Grande do Sul: 1827 – 1931. Passo Fundo: EDIUPF, 1997.


[1] Licenciado em Pedagogia – Anos Iniciais do Ensino Fundamental: Crianças, Jovens e Adultos pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul – UERGS, unidade de Vacaria; Professor do Magistério Estadual no Município de Campestre da Serra; Diretor do Departamento Cultural do Grupo de Cultura Gaúchos de 35, de Vacaria; autor de artigos publicados em jornais, em livros e CDs ROM; premiado em concurso de poesias.

Um comentário:

  1. Parabéns, Edgar, pelo resgate do trabalho realizado com os autores regionais. Estou procurando o teu contato, pois ainda temos aquela obra sobre a Literatura Regional para publicar.
    Espero que leias este recado. Abraços. Ana Carolina

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